Prof. Dr. Silvano Raia, descreve biografia do Prof. Dr. Adib Jatene

Data: 24.11.2014

Adib Jatene, o homem

Desprovido de orgulho e vaidade, Adib Jatene era um exemplo vivo de que dignidade e grandeza interior conferem, por si só, força e autoridade.

A trajetória de Adib Jatene de Xapuri, no Acre, o líder da cirurgia cardíaca e expoente do pensamento médico em nosso país conforta e estimula. Sua lembrança nos desenha um protótipo de ética e competência, qualificações indispensáveis neste momento de dúvida em relação ao futuro do nosso Brasil.

Plantado em seu 1,90 metro de altura e corpo atlético de remador, transmitia uma sensação de grandeza, dignidade e respeito.

Agia sempre com grande respeito ao próximo. Era afável e atencioso com todos, independentemente do nível cultural ou social. Desprovido de orgulho e vaidade, era um exemplo vivo de que dignidade e grandeza interior conferem, de per si, força e autoridade.

Não perdia tempo “jogando conversa fora”. Nunca dele ouvimos uma piada ou uma palavra mais vulgar. Argumentava com lucidez e foco, empregando apenas dialética consistente baseada em fatos e desprovida de especulações teóricas, ainda que plausíveis. Defendeu grandes ideias, enfrentando resistência por parte daqueles que se sentiam ameaçados pela grandeza de seu trabalho.

Lutou sempre por causas abrangentes ligadas à saúde pública e ao ensino médico. Entretanto, nem sempre seus esforços atingiram os objetivos programados. É do conhecimento de todos seu esforço na articulação política para a aprovação da CPMF (o imposto do cheque) e seu destino à saúde pública.

O novo imposto foi aprovado, em parte graças à sua participação, mas os recursos dele decorrentes foram destinados principalmente a outras finalidades.

Evolução semelhante teve sua dedicação para reduzir o número de escolas médicas, interrompendo a atividade daquelas sem possibilidade de formar profissionais devidamente capacitados. Um amplo relatório elaborado por Jatene e várias associações de classe não surtiu efeito. Pelo contrário, persistiu a decisão de criar novas escolas médicas, mesmo em Estados desprovidos de infraestrutura hospitalar para tal fim.

Entretanto, e felizmente, teve êxito seu projeto assistencial baseado no modelo de médico da família que tem conseguido excelentes resultados junto às populações mais carentes de todo país. Circunscreve áreas com aproximadamente 3.000 habitantes para as quais se destina o atendimento prestado por equipes multidisciplinares locais.

O seu legado de ética e competência nas práticas clínica e cirúrgica é motivo de inspiração para superar dificuldades aparentemente intransponíveis. Foi exímio no raciocínio horizontal, associando duas ideias já conhecidas para a criação de uma terceira inédita.

Baseado na experiência de grandes casuísticas, superou dificuldades relacionadas à técnica operatória e de assistência cardíaca extracorpórea, inovando métodos cirúrgicos e equipamentos amplamente utilizados aqui e no exterior.

Sofrendo a perda do companheiro e amigo, e assombrado pelo panorama atual, lembro a obra “Júlio César”, de William Shakespeare, na qual Marco Antonio, nas escadarias do Senado romano e diante do corpo de César, exorta o povo a transformar as sete chagas do cadáver do imperador em sete bocas cujas vozes deveriam incentivar uma reação contra as distorções políticas e sociais da época.

Bem haja, Adib. Valeu!

SILVANO RAIA, 84, professor emérito e ex-diretor da Faculdade de Medicina da USP, é membro da Academia Nacional de Medicina

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Fonte: Folha de São Paulo