Por que algumas regiões do Brasil não conseguem vencer a Hanseníase

Data: 15.12.2016

 

Parecia uma alergia a picada de inseto. Mas uma enfermeira que visitou a escola de Evelin teve outra suspeita.

Aproximou um tubo de ensaio quente e outro frio na mancha vermelha na mão da menina, deu uma ligeira alfinetada e passou algodão por cima.

A menina acusou sensibilidade, mas nem tanto. A mancha, que avançava na direção do polegar, estava dormente. Tinha cara de hanseníase. E era.

Moradora de São Luís, no Maranhão, Evelin encorpa, aos dez anos, a estatística da doença em território nacional.

A cada ano, o Brasil registra 30 mil casos novos de hanseníase, enfermidade já controlada em grande parte do mundo. Perde apenas para a Índia, com 126 mil registros/ano.

Terra de Evelin, o Maranhão é líder em casos absolutos no Nordeste e segundo no país (atrás apenas de Mato Grosso), com cerca de 3,5 mil novos casos por ano informados ao Ministério da Saúde.

Dos 217 municípios maranhenses, apenas 17 não relataram ter doentes de hanseníase em 2015 – e ainda assim, estes podem ter simplesmente não tê-los descoberto.

“Como esses 17 não têm registro algum, se em volta todos têm?”, questiona Léa da Costa, superintendente de Epidemiologia e Controle de Doenças da Secretaria Estadual de Saúde.

A hanseníase é uma doença crônica e infectocontagiosa que atinge pele e nervos periféricos, e é comumente transmitida por pessoas doentes que não estão em tratamento.

Tem cura, mas pode provocar graves incapacidades físicas se o diagnóstico demorar ou se o tratamento for inadequado. O tempo entre contágio e aparecimento dos sintomas varia de dois a cinco anos.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) registrou pouco mais de 175 mil casos no mundo no final de 2015, mas considera a doença sob controle – quando o índice de prevalência é de menos de um caso para cada 10 mil habitantes – desde 2000.

Índice de prevalência de hanseníase por Estado, em dados de maio de 2015, mostram a disparidade regional da doença

Índice de prevalência de hanseníase por Estado, em dados de maio de 2015, mostram a disparidade regional da doença

No Brasil, o índice já recuou mais de 70% nos últimos 12 anos e ficou em 1,01 em 2015, mas ainda há enorme variação entre as unidades da Federação – no Maranhão, por exemplo, estava em 3,76 em maio passado.

O Maranhão também lidera em casos entre menores de 15 anos – são cerca de 400 por ano, ou 12% do total do Estado.

No Brasil, essa participação das crianças em novos casos fica em torno de 7% a 8%, o que mostra quão ativa a doença ainda é no país – uma criança doente indica em geral que há um adulto não tratado transmitindo hanseníase.

“Isso ratifica o fato de termos uma endemia oculta e que ainda deve permanecer por muito tempo aqui”, afirma o dermatologista Marco Frade, presidente da Sociedade Brasileira de Hansenologia (SBH).

Discutindo causas

A situação da hanseníase no Maranhão e em Estados mais afetados foi um dos principais temas do 9º Simpósio Brasileiro de Hansenologia, que ocorreu no final de novembro em São Luís.

O contágio se dá via aérea; o bacilo causador da doença pode ser passada por tosse, espirro e secreção nasal -, mas 90% da população tem defesa natural contra ela.

O contágio, contudo, depende muito das condições nutricionais, de higiene e de educação – e o Maranhão, por exemplo, é um dos Estados com piores índices sociais do país. Quanto mais baixa a imunidade, maior o risco.

Um estudo recente mostrou, por exemplo, que apenas 2% dos pacientes de hanseníase registrados no Estado de 2000 a 2012 tinham curso superior completo.

“Essa é uma doença de pobre”, enfatiza Maria Leide de Oliveira, coordenadora do Sistema de Informação Geográfica (SIG) de Hanseníase da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

O tratamento da hanseníase é relativamente simples. Diagnosticado, o paciente recebe de graça medicamentos de ingestão oral padronizados pela OMS.

É a chamada polioquimioterapia, ou PQT, que mata 90% dos bacilos de Hansen na primeira tacada. As doses seguintes podem se estender por seis meses a um ano, a depender se o caso é paucibacilar (poucos bacilos) ou multibacilar (muitos bacilos).

Se seguir o tratamento à risca, a pessoa recebe alta por cura. No entanto, o que perdeu de sensibilidade, acuidade e força pode ter perdido para sempre. Daí a necessidade de um diagnóstico precoce, para evitar sequelas como incapacidades e deformidades.

Diagnóstico

Leoneide Bastos teve a sorte da boa intuição. Seu primeiro sintoma foi uma mancha esbranquiçada no antebraço, que mais parecia uma micose. Mas a pomada caseira, normalmente eficaz, não deu resultado.

A mancha continuava ali, e passou a incomodar a enfermeira de São Luís, que a escondia da vista alheia. Um dia, ela cutucou o local com a ponta de uma caneta.

A sensibilidade naquele braço em relação ao outro parecia igual. Tempos depois riscou um fósforo, apagou a chama e aproximou o palito da mancha. Mal sentiu a queimação.

“Foi quando falei com o meu irmão, que é dermatologista, e ele logo desconfiou de hanseníase.”

A primeira biópsia deu negativo, a segunda idem. No entanto, a presença da mancha, a insensibilidade local e a posterior fraqueza naquele braço indicavam que Leoneide apresentava a forma mais branda, a tuberculoide.

Ela tinha 28 anos na época, e doze meses depois recebia alta. Hoje, aos 40 anos, depois de também se curar de um câncer, compara sua reação a uma e outra doença.

“Acho que a tristeza e a negação foram muito parecidas, embora a hanseníase seja bem menos grave que a presença de um tumor”.

Contato

A contaminação também depende da exposição frequente ao Mycobacterium leprae, nome científico do bacilo de Hansen. “O contágio parece implicar uma carga continuada de bacilos”, afirma Marco Frade, da SBH.

Não é à toa que esteja mais presente em locais de grande aglomeração – e não é à toa que normalmente o transmissor é alguém da família ou uma pessoa próxima. O bacilo tem incubação lenta – de dois a sete anos -, e a infecção pode levar esse tempo todo para se manifestar.

“Tem criança doente cuja fonte de contágio foi o avô”, destaca Maria Leide de Oliveira.

Outro tópico muito debatido no encontro em São Luís foi a baixa notificação da doença, atribuída em parte à ausência de médicos em áreas mais remotas.

O Maranhão, segundo o Conselho Federal de Medicina, detém a menor taxa de doutores do país: 0,79 para cada mil habitantes. No entanto, mesmo nos centros em que há mais profissionais da saúde, é grande o desconhecimento da doença.

“As pessoas aprenderam mais sobre hanseníase nas igrejas do que nas escolas, é como se essa infecção não existisse mais”, diz Marco Frade. E quem sabe que ela existe nem sempre sabe reconhecê-la, seja nos primeiros sinais, seja em seus sintomas incapacitantes.

Um paciente de Frade, por exemplo, chegou a ele após um tratamento pesado contra uma suposta doença autoimune, com indicação inclusive de transplante de medula, quando na verdade as mãos e os pés em garra e a dormência eram manifestações de uma hanseníase avançada, multibacilar.

“Precisamos perceber esses pacientes antes que virem figuras de livro”, alertou, em referência aos casos mais dramáticos.

Preconceito

Não bastassem tantas complicações no diagnóstico, há outra de ordem semântica: a falta de um nome que dimensione a gravidade da doença sem que se aumente seu estigma milenar.

A lei 9.010, de 1995, oficializou no Brasil a mudança do termo lepra para hanseníase. “Só quem passa por esse diagnóstico sabe o que significa o medo de ser chamado de leproso”, diz Pollyane Medeiros, voluntária do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).

Pollyane é de Recife, que em 2015 ocupava o nono lugar em casos detectados no país. Aos 26 anos, a falta de força em um dos braços a levou a peregrinar por dez consultórios médicos até que uma eletroneuromiografia apontou o comprometimento do nervo.

Identificada a hanseníase, a funcionária pública fez tratamento para anular a carga bacilar e se afastou do trabalho por três anos, tempo durante o qual fez 120 sessões de fisioterapia, 40 de acupuntura e 80 de terapia ocupacional.

Funcionária pública Pollyane Medeiros (à esq. na foto) e a enfermeira Leoneide Bastos se curaram da hanseníase

Funcionária pública Pollyane Medeiros (à esq. na foto) e a enfermeira Leoneide Bastos se curaram da hanseníase

Ela diz acreditar ter pegado a doença de um vizinho que convivia diretamente com a família e que apresentava várias placas no corpo, sinais que hoje desconfia ser de hanseníase.

A questão é que, para alguns, o termo cunhado para homenagear Gerhard Armauer Hansen, descobridor do bacilo em 1873, ainda é distante e complexo para a população brasileira.

“Muitos acham que lepra é doença de gente e hanseníase é doença de cachorro”, afirma Maria Leide de Oliveira, referindo-se à confusão com a leishmaniose.

“Do ponto de vista do estigma, a mudança foi boa, mas talvez tenhamos minimizado demais o impacto da infecção”, completa.

O hansenólogo Egon Daxbacher, médico pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, vai além. Não só discorda da palavra lepra como prefere “portador de hanseníase” em vez de hanseniano.

Por coerência, usa “portador de diabetes” e não diabético, e “portador de hipertensão” no lugar de hipertenso. “O problema é adjetivar uma pessoa com uma doença”, afirma.

Remanescentes

Antiga colônia de portadores de hanseníase, retrato de um tempo em que os doentes eram isolados, o Hospital Aquiles Lisboa, na periferia de São Luís, é centro de referência para tratamento da doença no Maranhão.

O hospital está aberto à população em geral, mas se tornou referência em hanseníase pelo próprio histórico. Seus 15 leitos de internação, contudo, normalmente ainda abrigam apenas sequelados da doença, muitos vindos do interior.

“O portador de hanseníase devia ser atendido em qualquer hospital, mas não é bem assim que acontece”, diz Raul Fagner da Silva, diretor administrativo do Aquiles.

“O preconceito ainda é muito grande, principalmente do pessoal da saúde, que deveria oferecer um tratamento humanizado, mas não o faz.”

Deusanira Pereira de Souza, de 59 anos, é uma das pacientes. Recebeu o diagnóstico aos 16 anos, e a partir de então a falta de sensibilidade nas extremidades só lhe fez castigar o corpo. Ela perdeu todas as falanges dos dedos das mãos, um dos pés tem os dedos em garra e o outro, com uma úlcera que não sara, está para ser amputado.

Souza parece resignada com a cirurgia. “Quero acabar com essa dor e parar de tomar tanto remédio; estou com anemia e isso está acabando com os meus rins”, diz, enquanto mostra a perna avermelhada escapando da gaze.

O Aquiles Lisboa é velho conhecido de Deusanira Souza. Ali ela morou com “dona” Domingas Borges, que viveu o período de internação compulsória para hansenianos, medida que vigorou no Brasil de 1923 a 1962 e que teve pico no Brasil nos anos 1940.

Isso era comum à época: crianças e adolescentes detectados com a doença eram enviados para o local, e a administração escolhia com quem morariam.

Naquele período, o governo abriu cerca de 40 “leprosários” no país, hoje todos fechados ou funcionando como hospitais convencionais. O Aquiles, mais conhecido como Colônia do Bonfim, é um pouco anterior, de 1937.

Chegou a ter 600 internos isolados numa estrutura que abrigava cinema, refeitório, igreja, escola, cemitério, delegacia e prefeitura. Dentro do terreno do hospital foram mantidas algumas casas de antigos moradores, aqueles internados compulsoriamente.

“A direção do vento determinava a posição geográfica das colônias”, diz o paciente Flávio Lisboa, as mãos com dedos incompletos, os pés em botinas especiais, uma medalha de Jesus Cristo no peito.

“O vento precisava soprar da zona sadia, onde ficava a administração, para a zona doente, onde ficávamos”, explica.

Flávio Lisboa e Deusanira de Souza são internos na antiga colônia do Bonfim; informação é arma no combate ao preconceito, afirmam médicos

Flávio Lisboa e Deusanira de Souza são internos na antiga colônia do Bonfim; informação é arma no combate ao preconceito, afirmam médicos

Com a morte de dona Domingas, em 2013, restaram dois do período do isolamento obrigatório dos doentes: Flávio, de 70 anos, e Maria Lucinda Santiago Pinheiro, de 74 anos, que não estão mais infectados pelo bacilo de Hansen, mas lidam com as consequências da doença.

Eles ocupam duas das 30 casas do terreno, recebem pensão vitalícia do governo federal e Lisboa conta com outra, de um salário mínimo, do governo do Maranhão. Não pagam aluguel, nem água, nem luz, mas a TV e a internet são por conta deles.

Lisboa, obrigado a parar de estudar na adolescência por causa da internação, gosta de palavras novas, cujo significado sonda no Aurélio. A última que aprendeu foi “adrede”. “Significa ‘de propósito'”, diz, orgulhoso do conhecimento.

Souza vira com dificuldade as páginas de outro livro, um evangelho comentado para cada dia do ano, que ela abriga embaixo do travesseiro do hospital. Lá está o provérbio do dia: “O desejo mais profundo da humanidade é o da imortalidade.”

No caso dela, o desejo mais íntimo é sair dali para cozinhar para a família. Seu provérbio pessoal para uma doença curável e sem propósito no século 21 é mais amargo. “Ela veio para destruir os membros mais importantes do ser humano: as mãos e os pés.”