O Teste de Credé na Prevenção da Oftalmia gonocócica.

Data: 22.04.2014

O Dr. Silvio Rennan Monteiro de Barros, Pediatra e Colaborador do CEADS, nos enviou um artigo sobre a eficácia do teste de Credé para prevenção de Oftalmia Gonocócica.

Oftalmia gonocócica e utilização do teste de Credé

Segundo o ministério da saúde (MS), conjuntivite neonatal é definida como uma conjuntivite purulenta do recém-nascido, no primeiro mês de vida, usualmente contraída durante o seu nascimento, a partir do contato com secreções genitais maternas contaminadas. O termo oftalmia neonatal (ON) é usado com freqüência para definir a conjuntivite que ocorre nas primeiras quatro semanas de vida, mas alguns autores preferem o termo conjuntivite neonatal devido à diminuição da freqüência do gonococo como microorganismo etiológico e ao aumento da freqüência de outros microorganismos, como Chlamydia trachomatis (CT), Staphylococcus aureus, Haemophilus sp, Streptococcus pneumoniae, Streptococcus faecalis, Pseudomonas aeruginosa, vírus herpes simples tipo II e o agente nitrato de prata. A infecção ocular é usualmente adquirida durante a passagem do feto através do canal de parto, sendo incomum afetar recém-nascidos por via cesariana.

Em países industrializados, taxas de incidência de oftalmia neonatal variam na conjuntivite por clamídia entre 5 e 60 por 1.000 nascidos vivos, enquanto na conjuntivite gonocócica variam entre 0,1 e 0,6 por 1.000 nascidos vivos, e sua prevalência varia consideravelmente ao redor do mundo. No Brasil, existem poucos estudos sobre a ON. Um deles foi realizado em Pernambuco, registrando uma incidência de 3% de conjuntivite neonatal infecciosa, não registrada a prevalência dos agentes infecciosos por tal incidência. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2001, a infecção genital por CT é a DST bacteriana mais comum em todo o mundo. No Brasil, estudos realizados, de 2000 a 2008, nas cidades de Campinas, Salvador, Fortaleza e Vitória, com mulheres sexualmente ativas, na faixa etária de 12 a 49 anos, atendidas em serviços de atenção básica e planejamento familiar, mostraram prevalência de CT variando entre 7,4 e 17,1% e de gonococo entre 0,5 e 2%. Em gestantes, estudos realizados em Manaus, Fortaleza, Goiânia, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, nos anos de 1999 a 2005, mostraram prevalência de CT entre 9,4 e 24,4% e de gonococo de 1,5%.

Entre os agentes causadores da conjuntivite neonatal, a bactéria Chlamydia trachomatis infecta aproximadamente 50% das crianças nascidas por via vaginal de mães infectadas e tem sido identificada como a causa mais comum de conjuntivite neonatal em algumas

regiões do mundo. Embora a C. trachomatis seja o agente mais freqüente de ON na América do Norte, as complicações da oftalmia gonocócica são mais severas, aparecem mais rapidamente e são prováveis causas de perda da acuidade visual.

A ON foi um grande problema de saúde pública durante séculos, em todo o mundo. No final do século XIX, na Europa, sua prevalência entre os nascidos vivos, em maternidades e hospitais, excedia a taxa de 10%, produzindo lesão corneana em 20% e cegueira em 3% dos acometidos. Era a principal causa de cegueira infantil, sendo responsável por 60 a 73% dos casos nas instituições para crianças cegas. A epidemiologia desta condição mudou radicalmente com a introdução do método de Credé, em 1881, que consistia na aplicação de uma gota de solução aquosa de nitrato de prata (NP) a 2%, após a limpeza dos olhos. Esse procedimento reduziu dramaticamente a incidência da ON, não só na Europa, mas em todo o mundo. Posteriormente, a solução de NP a 1% passou a ser o método de Credé, por ser menos irritante que a 2%.

A partir do final do século XIX, tendo em vista a alta prevalência da infecção genital pela N. gonorrhoeae (NG), o método de Credé teve inquestionável importância na prevenção da ON e da cegueira, na Europa e em todo o mundo. No Brasil, ele foi regulamentado em 1977, pelo Decreto-Lei 9713, e posteriormente, complementado pelo Decreto- Lei 19941, que normatizou a operacionalização do método.

Até o final do século XX, o método de Credé foi o de escolha para a profilaxia de conjuntivite neonatal em todo o Brasil, tendo sido ainda recomendado na última edição do Manual DST /AIDS do MS, 2006.

O NP é usado como antisséptico e adstringente. Seu poder germicida deve-se à combinação do íon prata com certos grupamentos das proteínas dos micro-organismos, levando à sua desnaturação, com a consequente ruptura e morte do germe. O NP destrói a maioria dos micro-organismos na concentração de 0,1%; concentrações menores têm propriedades bacteriostáticas. Mas o fato é de que o uso do NP há muito tem sido questionado, devido ao seu efeito irritativo, além de sua incompleta proteção contra CT, o principal agente etiológico da oftalmia neonatal nos dias atuais.

Pelo fato de ser irritativo e, talvez, também, por não estar disponível para venda, em farmácias, levantamentos realizados no período de 1975 a 1999, por vários autores, em capitais de alguns estados do Brasil, mostraram que o método de Credé não era utilizado em grande porcentagem das maternidades, sendo substituído pelo vitelinato de prata a 10% (Argirol®). Os estudos mostraram também que o NP era frequentemente utilizado de forma supostamente incorreta, em grande parte das casas de parto, inclusive no que diz respeito ao tempo de armazenamento da solução, visto ser necessária sua renovação, pelo menos, a cada 48 horas, de acordo com a Farmacopéia dos Estados Unidos. Ainda, em levantamento bem mais recente, do mês de março de 2007, realizado em cinco maternidades da cidade de Florianópolis, foi encontrado que, em três delas, a profilaxia da ON era realizada com o vitelinato de prata, e nenhuma utilizava o NP.

É importante ressaltar que, embora o NP a 1% seja realmente irritativo para os olhos, é possível que boa parte dos casos de conjuntivite química, mormente os mais intensos, esteja associado à concentração mais elevada da solução, conforme também sugerem Mathieu, 1958  e Giffin, 1967, principalmente considerando que grande parte dos serviços não armazena o medicamento da maneira e pelo tempo recomendados.

Instilações acidentais de solução de NP mais concentrada (10 a 20%) podem causar ulceração conjuntival e corneana, com sequela cicatricial grave, e catarata, tendo sido relatados casos importantes por alguns autores citados por Giffin, em 1967.

Pelo exposto, houve quem passasse a substituir o NP por antibióticos, dentre os quais a tetraciclina e a eritromicina parecem ter sido os mais utilizados, com base no fato da CT estar incluída no seu espectro de ação, e também pela sua esperada ação contra bactérias gram positivas, frequentemente relacionadas com a ON, e contra cepas de NG. No entanto, esses agentes não se mostraram mais eficazes contra a ON que o NP, pelo menos quando utilizados da mesma maneira, ou seja, em aplicação única. Além disso, os antibióticos citados levaram à geração de resistência bacteriana e à consequente ocorrência de epidemias, relacionadas com germes resistentes, como estafilococos. Assim, restou, como única vantagem desses antibióticos, em relação ao NP, a menor ocorrência de conjuntivite química. Apesar do exposto, ainda em publicação relativamente recente, de 2006, o MS orientava a profilaxia da ON da seguinte forma: “Nitrato de prata a 1% (Método de Credé), ou eritromicina a 0,5% (colírio), ou tetraciclina a 1% (colírio), em aplicação única, na 1ª hora após o nascimento”.

Ao que tudo indica, também parece não haver uma prática comum adotada pela comunidade internacional para a profilaxia da ON. Enquanto no Reino Unido e na Austrália não se realiza mais a profilaxia, na maioria dos estados dos Estados Unidos da América ela é obrigatória por lei.

Algumas outras substâncias vem sendo utilizadas na profilaxia da ON. Estudos existentes até o momento parecem deixar bem estabelecidas algumas das propriedades da Iodopovidona: espectro de ação muito amplo, sendo um produto ativo contra todos os possíveis agentes da ON, nesse aspecto, com nítida vantagem sobre os demais produtos utilizados até o momento, inclusive em sua atividade contra a CT, o agente presumidamente mais frequente na ON; não induz resistência microbiana; baixa toxidade local na concentração proposta; provável ausência de toxicidade sistêmica; estabilidade; autopreservação; autoesterilidade; disponibilidade; baixo custo; torna a superfície ocular amarronzada, por alguns minutos, o que serve como indicador de uma aplicação correta. Tais propriedades permitem afirmar, como havia sido feito no Congresso da Sociedade Austríaca de Oftalmologia, já em 2000, e, por Schaller, em 2001, no Bullettin of World Health Organization, que a iodopovidona é o produto de escolha na prevenção da CN, por ser ela, diante das evidências, o melhor dentre os produtos testados até o momento.

Bibliografia:

  1. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional de DST e AIDS. Manual de controle das doenças sexualmente transmissíveis. 4a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2006. 140 p. (Série Manuais, N. 68)
  2. Credé CS. Die Verhütung der Augenentzündung der Neugeborenem. Arch Gynaekol. 1881;18: 367-70.
  3. Credé CS. Prevention of inflammatory eye disease in the newborn. Bull World Health Organ. 2001;79(3):264-6.
  4. Netto AA, Simas AZ. Avaliação do uso do Método de Crede em maternidades da Grande Florianópolis. Rev Bras Oftalmol 1999;58(6):477-82.