Moradores de antigo leprosário vivem sob novo isolamento

Data: 12.01.2015

Ex-internos de colônia em Goiás perderam estrada que dava acesso ao local há 60 anos; até hoje, não têm CEP

Atualmente, cerca de 40 famílias moram no que restou do hospital; na época, pacientes eram internados à força

NATÁLIA CANCIAN ENVIADA ESPECIAL A GOIÂNIA

Primeiro, ocorreu o fechamento do portão que dava acesso a um hospital ao lado da vila. Depois, o anúncio da demolição de um clube e da antiga capela, onde era comemorada a festa de Reis.

Agora, o bloqueio de uma estrada que, há 60 anos, dava acesso à comunidade.

Separados de suas famílias devido às políticas de internação compulsória que vigoraram no país até a década de 1980, moradores da região da extinta colônia Santa Marta, construída em Goiânia para abrigar portadores de hanseníase, afirmam viver hoje um novo isolamento forçado.

Pelo menos 40 famílias, formadas por remanescentes do antigo “leprosário” construído em 1943, ainda resistem no local.

São pessoas que, com o isolamento anterior, perderam contato com suas antigas famílias. Com a melhora no tratamento, passaram a viver em casas construídas pelo governo atrás do hospital onde eram atendidas.

O cenário do que restou de uma época que marcou a história da saúde pública no país hoje beira o abandono.

Sem manutenção, a maioria das casas da antiga colônia (extinta e transformada em “residencial” Santa Marta) fica invisível em uma vila cortada por ruas de terra, repletas de lama e buracos.

Moradores não têm endereço. Sem CEP, cartas são entregues na casa de uma só família, que as distribui à comunidade. “Estamos fora do mapa”, diz a ex-paciente Ana Cândida Gonçalves, 84.

Após curar-se da hanseníase, Sebastião Moura, 62, vive hoje em uma casa com dois quartos e sala praticamente vazios, habitados só por mosquitos, cama, objetos e algumas roupas. “Parece que estou abandonado até de Deus.”

“GRITOS DE DOR”

A situação da antiga colônia Santa Marta deve ser levada à comissão de direitos humanos da ONU em janeiro pelo Morhan, entidade que visa a reintegração dos atingidos no passado pela hanseníase.

No país, a estimativa é que existam 6.500 remanescentes dos antigos leprosários, como eram chamados os centros de tratamento –a estimativa é que um terço ainda viva nesses locais.

Alguns buscam hoje obter a posse do lugar onde estão.

Em Goiânia, os ex-internos foram divididos. Alguns voltaram para as famílias de origem, outros ganharam a escritura de casas em um terreno próximo e outros ficaram na região do leprosário.

Integrantes deste último grupo, 20 recebem atendimento no Hospital de Dermatologia Sanitária, instalado no lugar do antigo leprosário e com foco em reabilitação.

Outros, com o novo isolamento, reclamam que precisam atravessar um matagal ou percorrer quase dois quilômetros extras para ter acesso à saída do “residencial”.

“Dividiram a colônia, e ficamos só com os gritos de dor”, diz o aposentado Vicente Leite, 80, que sofre com sequelas da doença –no passado, tratamento tardio e falta de remédios faziam a doença afetar extremidades do corpo, como nariz, pés e mãos.

Cláudio Bueno da Silva, 53, levado ainda bebê à colônia, lamenta a situação do lugar. “Para quem pode andar já está difícil. E para quem não dá conta?”, diz, referindo-se à estrada bloqueada.

Fonte: Folha de S. Paulo

Local abriga ex-guarda que prendia doentes

Antiga colônia tinha fábrica, igreja, mercearia e até cinema; ex-pacientes que foram internados recebem R$ 1.100 ao mês

Hoje com 65 anos, um dos remanescentes do hospital foi levado ao lugar quando criança; nunca mais viu os pais

DA ENVIADA ESPECIAL A GOIÂNIA

O ex-guarda Elitones Ribeiro de Souza, 65, tem nas paredes de casa uma lembrança da extinta colônia Santa Marta, em Goiânia.

Antes responsável por prender pacientes que descumpriam regras –como atrasar-se para voltar ao leprosário em dias de “licença”– Elitones é agora quem vive atrás das grades.

Tudo começou quando ele viu, há três anos anos, sua casa ser destruída por um incêndio. Um diretor do hospital de Dermatologia Sanitária, estrutura que ocupou parte do lugar, então ofereceu: por que não reaproveitar os tijolos que eram da delegacia demolida?

“É pecado, mas prendi muita gente aí”, diverte-se ele, que foi paciente no leprosário antes de se curar e virar funcionário do local.

A colônia, no passado, tinha ritmo de minicidade. O espaço tinha posto da Polícia Militar, fábrica de curativos, igreja, mercearia e até um pequeno cinema.

Os doentes mais graves iam para pavilhões onde cada quarto abrigava quatro pacientes. Havia também um “preventório”, onde ficavam os filhos separados dos pais.

O sistema se replicou em todo o país a partir de 1930 e durou 50 anos.

Hoje, a hanseníase tem cura e é de fácil tratamento se diagnosticada com rapidez, diz o dermatologista Dilhermando Calil.

SEPARADOS

Trazido ainda criança para o “leprosário”, Lidovino José Braga, 65, é um dos que viveram a época do isolamento forçado. Com o tempo, recuperou-se, mas nunca mais encontrou seus pais.

Em 2007, a lei 11.520 criou uma indenização no valor de R$ 750 mensais (hoje R$ 1.100) a ex-pacientes que foram internados compulsoriamente devido à hanseníase.

Moradores das antigas colônias dizem que o valor é insuficiente. Em Goiânia, a maioria sofre com sequelas.

A situação faz com que muitos sonhem em obter a posse do lugar, conquista já obtida em outros Estados, como Rio de Janeiro e Acre, segundo o Morhan.

“Perdi meu pessoal de lá, mas o daqui me acolheu. Era um cuidando do outro”, diz Lidovino, que nem pensa em deixar o vilarejo.

“Se nos tirarem daqui, não vai ter ninguém mais para contar tudo isso”, afirma ele.

Governo de Goiás afirma que busca regularizar a área

DA ENVIADA A GOIÂNIA

O governo de Goiás diz trabalhar na “regularização” da área da extinta colônia Santa Marta. O processo começou em 2012, com a formação de um grupo para mapear casas e áreas públicas do local.

Hoje, além do Hospital de Dermatologia Sanitária e da vila de ex-pacientes, há também terrenos particulares e áreas de invasão no entorno, diz o governo.

Um dos projetos em estudo é construir um conjunto habitacional para quem vive na região.

A Agetop (agência goiana de transportes) diz que o bloqueio na estrada que dava acesso à colônia ocorreu a pedido do Hospital de Dermatologia Sanitária, devido ao barulho e à poeira.

Responsáveis pelo hospital negam querer isolar o local. Segundo a diretora técnica Mônica Costa, áreas, como o antigo clube, serão revitalizadas e poderão servir aos moradores.